Festa no Qatar
 



Contos

Festa no Qatar

Veronica Favato


Nas areias volumosas do tempo, a cultura do Oriente Médio permanece. Sobrevoando o deserto de Khor Al Abaid pode-se ver o Golfo Pérsico abraçando as dunas. Manchas verdes e marrons se misturam ao longe, delimitadas por estradas. Ao se aproximar do aeroporto, surgem desenhos de marinas e arranha-céus inusitados, superquadras retificadas e avenidas sem fim.

O Aeroporto Internacional de Hamad já está preparado para a Copa do Mundo, e aguarda mais de um milhão de torcedores. Suas estruturas onduladas remetem à topografia do Qatar, e cobrem grandes vãos de circulação. Os saguões têm pé direito triplo, revelando enormes arcos estruturais e mezaninos. As fachadas têm vidros de alto desempenho, que controlam as trocas de calor. Uma escultura de ursinho amarelo-canário recebe os turistas, remetendo à infância e ao acolhimento. Enormes palmeiras são plantadas nos interiores, perto de cafeterias e áreas de descanso. O agradável som das cascatas remete ao oásis. Como em todos os edifícios públicos, há uma mesquita, e é possível avistar seus minaretes ao longe. Neste país, uma arquitetura em escala monumental revela opulência, devoção e poder. Este significado imagético também está implícito na construção dos estádios.

O Estádio de Al Janoub, com capacidade para 42 mil pessoas, foi baseado no desenho das velas dos pescadores, os Dhows. No século XIX, a riqueza de Doha eram as pérolas. Mercadores atravessavam todo o oriente em busca das mais perfeitas. As redes de pesca estão representadas nos pisos geométricos e em esculturas grandiosas.

Os motivos das paredes e colunas remetem aos muxarabis, treliças de madeira com origem árabe, que deixavam passar a luz natural e a ventilação, mas não o sol nas aberturas, desde os tempos remotos. Este antigo mecanismo proporcionava ver e esconder, permitindo às mulheres nas casas mais abastadas olhar o mundo com certa privacidade.

A arquibancada possui um desenho que lembra as ondas do mar. Há uma tubulação de ar-condicionado embaixo dos bancos, e o ar é filtrado no campo de futebol, para os jogadores. Milhares de holofotes de LED permeiam as estruturas metálicas, para tirar a foto com iluminação perfeita no momento do gol. Há uma enorme plantação de grama ao redor do estádio, para reposição em campo. Dos aparelhos de som pode-se ouvir o Salat, a chamada devocional diária, guiando os fiéis silenciosos à sala de oração mais próxima.

Já o Estádio de Al Bayt tem capacidade para 60 mil pessoas. Sua fachada remete às tendas dos beduínos, com estrutura tensionada. Os postes com placas solares são em formato de agulha, que era usada para costurá-las. Há uma fogueira na frente da edificação, lembrando a sobrevivência no deserto. Nos interiores, motivos coloridos de tapete persa invadem os tetos, coberturas e assentos da arquibancada. Há uma pista para passeio de camelos. Sim, o torcedor pode chegar de metrô, a cavalo ou montado em um camelo.

Só não se pode chegar a pé, em nenhum canto da cidade, pois o sol abrasador, as grandes distâncias e os incontáveis canteiros de obra são obstáculos ao pedestre. No país do petróleo, o carro é o principal meio de transporte. Embora haja investimentos no turismo, o planejamento urbano ainda é americano.

Também não se pode beber em público, nem é possível comprar cervejas e drinks em supermercados. Apenas hotéis e locais autorizados podem vender bebidas alcoólicas. Como ficarão as marcas de cervejas patrocinadoras do evento? Como vai haver festa sem bebida?

As demonstrações de afeto em público são proibidas e podem acarretar multas, deportação ou prisão. Então nem pense em dar aquele beijo de comemoração na hora do gol. É vetado aos hotéis receber casais que vivem juntos sem uma certidão de casamento. As roupas devem ser modestas, sem decotes, saias curtas, barrigas ou ombros de fora. Como vão controlar as vestimentas de milhões de torcedores?

O Qatar quer atrair turistas, mas será que está preparado para ser multicultural? Afinal, será que os ventos do deserto vão mover as areias do tempo?

VERONICA FAVATO mora em São Paulo, mas é natural do Rio de Janeiro. É arquiteta, economista e professora universitária. Trabalhou como revisora de livros técnicos para diversas editoras. Atualmente participa do Curso Online de Formação de Escritores e de suas oficinas, tendo estudado com grandes mestres: Luísa Aranha, Marcelo Spalding, Rubem Penz, Márcia Ivana, Bruna Agra Tessuto, Duda Falcão entre outros.

 

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